No dia 23 de fevereiro recorda-se a data de deportação de tchetchenos e outros povos em 1944, e corresponde a um dia de acções em apoio ao povo Tchetcheno em diversos países da Europa (França, Alemanha).
Cristina Dunaeva e Fernando Bonfim, assinando pela Ação Literária pela Autodeterminação dos Povos, são autores do livro “O Terrorismo de Estado na Rússia: a guerra na Tchetchênia nos descaminhos da industria da violência” (ed. Achiamé, Rio de Janeiro 2006). Fruto de trabalho de dois anos, procuraram contribuir com as lutas de movimentos pela autodeterminação do povo tchetcheno e de resistência à xenofobia, racismo e limpeza étnica no território da ex-URSS. O foco principal da publicação é o conflito dessa pequena républica situada na região a norte das montanhas do Cáucaso, iniciado em 1994 com a invasão do território pelo exército da Federão Russa. Há dois séculos que os tchetchenos são chamados de terroristas, ora pelos dirigentes do Partido Comunista da URSS, e agora por Putin e seus demais. Mas quem é terrorista nesta História? Quem utiliza a retórica do terrorismo nos dias de hoje e com quais objectivos? Quais os interesses comuns entre os governantes de Estados e os Empresários ligados à industria transnacional da violência?
Antecipando a conversa fica um pequeno artigo introdutório ao tema...
Imperialismo russo e a guerra na Tchetchênia:
os descaminhos da indústria da violência
Convidada pela Federação Internacional de Direitos Humanos para o IV Fórum Social Mundial, Lida Iussupova procura incansavelmente denunciar um dos mais graves genocídios contemporâneos: o extermínio generalizado e o terror militar causado pela guerra na Tchetchênia. Representante da ONG Memorial na cidade de Grozny, capital da Tchetchênia, Lida recebeu em abril de 1994 o prêmio Martin Ennals Award for Human Rights Defenders por sua luta em defesa dos direitos humanos.
Antes de retornar para Grozny, Lida (...) nos relatou as atuais condições de vida dos tchetchenos, a história das guerras, a resistência de seu povo contra a violenta ditadura do Estado soviético e, atualmente, contra os crimes de guerra das tropas militares russas.
Os povos das montanhas do Cáucaso Setentrional – tchetchenos, inguches, ossetas, kabardinos, balkaros, karatchai, tcherkesse e outros – sempre representaram entraves para as tentativas imperialistas euro-asiáticas: resistiram aos impérios tártaro-mongol, turco-otomano, russo e soviético. A geografia auxilia nas estratégias de resistência. A região montanhosa dificulta o acesso para as tropas dos invasores, enquanto as formas seculares de auto-subsistência das comunidades tradicionais colaboram para a sobrevivência.
Pastores nômades e agricultores, estes povos organizavam-se através de conselhos das comunidades e foram vistos como bárbaros e “atrasados” não só pelo Império Russo que tentou dominá-los durante longa e sangrenta Guerra do Cáucaso (1817-1864), mas também pelos dirigentes da União Soviética que se opuseram à criação de uma República Autônoma dos Montanheses, logo após a revolução de 1917.
Com a desintegração da URSS, a Tchetchênia novamente proclama a independência. Mas o poder imperial somente trocou de nome porque, em 1994, as tropas russas invadem a Tchetchênia. Começa a guerra, que dura até hoje – vitimando mais de 300 000 pessoas e fazendo cerca de 500 000 refugiados.
Comunidades tradicionais na Tchetchênia
A estrutura social das comunidades tradicionais na região da Tchetchênia e do Cáucaso Setentrional é formada por teipes. As teipes podem ser compostas por diversas famílias e, além disso, aceitam outros agregados em sua composição social, provindos de outras regiões.
As teipes são constituídas por uma vila ou por um conjunto de vilas. Todas as questões cotidianas referentes aos seus habitantes são decididas nos conselhos, compostos pelos anciãos das teipes e, em alguns casos específicos, por outros representantes da comunidade. O Conselho dos conselhos legisla sobre questões que envolvem o coletivo das teipes. Forma-se, ainda, o Conselho Maior, congregando todos os povos das montanhas.
A estrutura horizontal, participativa e representativa dos povos das montanhas se contrapunha às tentativas de estabelecimento de um Estado ou outras formas de hierarquização institucional. No caso de guerra, escolhe-se um líder, a quem todos os habitantes juram lealdade militar. A terra, as águas e os bosques pertencem aos habitantes das vilas. As tarefas de subsistência são realizadas pela própria comunidade, baseadas essencialmente na plantação de batata, milho e trigo, além das atividades pastoris. Pelas torres de pedra, a segurança da comunidade se faz através de atenta observação do território.
O Estado na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS):
militarização, repressão e russificação
Após a criação da URSS, o processo de russificação e militarização no continente foi abrupto e violento. Abrupto por interromper e subjugar povos e comunidades que, por séculos, desenvolviam suas diversas formas de auto-governos. Em poucos anos, esse exercício de autonomia social foi substituído pela heteronomia estatal soviética (tal processo não fora exclusividade das ações do PC Soviético: em outros continentes, a formação e o desenvolvimento do Estado-nação caracterizou-se, essencialmente, pela usurpação das habilidades de auto-governo de comunidades tradicionais). Violento porque tais comunidades, descentralizadas e espalhadas pelo planeta, experimentaram a força dos modernos mecanismos de repressão militar combinados com a força de persuasão dos modernos mecanismos de propaganda e marketing. A sobrevivência do modo de vida comunitário autônomo fora encurralado. Assim, para compreendermos os conflitos atuais na Rússia provenientes da desintegração da URSS – como a guerra na Tchetchênia – percebemos que o processo de russificação, militarização e repressão constituiu a base das violações dos direitos humanos cometidos na época do governo imperialista da URSS.
A dominação pelo Estado das atividades comunitárias essenciais ao auto-governo social, tradicionalmente exercidas pela própria comunidade e núcleos familiares, se materializou através do surgimento de especialistas: estes passaram a apontar a melhor maneira para administrar a sociedade, gerir a economia, educar, remediar pequenas enfermidades, fazer sexo, lavar roupas, praticar esportes, parir crianças e enterrar os mortos. Indicam também a música da moda, explicam os motivos das grandes guerras e das catástrofes humanas, enfim, retiram de nós próprios as habilidades humanas de agir e emitir opiniões sobre nossas vidas. Aos especialistas do Estado é repassada a incumbência de gestão social. E a especialização da gestão social, por sua vez, nada mais é do que a radicalização da divisão do trabalho, processo capitalista iniciado com a Revolução Industrial, na Inglaterra, e globalizado através das grandes empresas transnacionais, na atualidade.
No caso do Estado soviético, a divisão do trabalho configurou-se na formação de uma classe social de gestores (dirigentes), empenhados em submeter a classe trabalhadora de camponeses e operários à nova ordem dita comunista. A operacionalização e implementação social dos mecanismos de lealdade aos dirigentes foram criados logo a partir das primeiras medidas de Lenin, principalmente na concepção da vetchka (ВЧК – Comissão Excepcional Superior, futura KGB) – os administradores, policiais e funcionários do Partido cuidavam para que toda e qualquer deslealdade significasse ato contra-revolucionário. No que se refere ao papel dos professores, estes já contavam inicialmente com amplo apoio do aparato estatal para universalizar o ensino obrigatório do idioma russo em todas as regiões da União Soviética. A nova ordem bolchevique procurava uniformizar, disciplinar e controlar a totalidade de centenas de povos que habitavam o extenso continente euro-asiático.
Os conflitos decorrentes desse processo, acentuados pela morte de milhões de pessoas com as repressões stalinistas (como a deportação de tchetchenos ordenada em 1944), são a origem das recentes guerras travadas entre o governo russo e os povos de ex-repúblicas soviéticas em torno da questão da autonomia política.
Atuais condições sociais na Tchetchênia
A infra-estrutura urbana da Tchetchênia foi destruída com a guerra. O sistema de canalização, os elevadores e a calefação nos prédios praticamente não funcionam. A população procura comprar água trazida de outros lugares. A eletrificação é reconstruída lentamente, improvisada em perigosas ligações clandestinas. As condições sanitárias estão em colapso. Apenas as avenidas centrais recebem limpeza adequada, enquanto nos demais locais acumula-se toneladas de lixo. No mercado central, ao lado das montanhas de entulho e outros detritos, comercializa-se carnes, verduras e frutas. O desemprego leva a população ao trabalho informal. Sem qualquer documentação, os trabalhadores são coagidos a pagar propina para a administração dos mercados. Além disso, são frequentemente assaltados por grupos armados e uniformizados.
O negócio mais lucrativo é a extração e refinação de condensador, atividade perigosa e extremamente prejudicial à saúde, assim como a coleta de metais e outros materiais nas fábricas abandonadas. Os coletores frequentemente se explodem com minas. O sistema de saúde é caótico. Além do tratamento dos feridos e enfermos, as crianças precisam de sério acompanhamento para reabilitação psicológica, pois muitas vezes permanecem longo período escondidas nos porões, sem alimentação adequada. A falta de vagas para as crianças nas escolas é permanente. Não há condições adequadas para o ensino, nem instalações para os estudos, nem sequer materiais escolares.
Dessa maneira, o resultado das recentes ações das tropas militares russas durante a guerra na Tchetchênia é a destruição da possibilidade de auto-governo comunitário naquela região, e o controle territorial da população na formação de guetos nas cidades, nas vilas rurais e nos campos de refugiados.
Refugiados
A situação de vida insustentável nas grandes cidades leva milhares de pessoas a fugir para as áreas rurais ou para os campos de refugiados, nas repúblicas vizinhas. Estas alternativas não amenizam os problemas, pois as vilas rurais são constantemente alvo das operações de limpamentos (bombardeios generalizados) pelas tropas russas, enquanto a precariedade e a instabilidade da vida nos campos de refugiados não possibilita qualquer esperança para os tchetchenos. Alguns arriscam um novo destino nos grandes centros urbanos da Rússia – como Moscou ou São Petersburgo – encontrando xenofobia, preconceito e repressão da polícia: são eternos suspeitos de terrorismo.
Política do medo cotidiano e a dinamização da indústria da violência
Mas a política de medo cotidiano não é novidade para a população russa, que já enfrentara outrora a paranóia do poder repressivo stalinista, as deportações e assassinatos em massa, a cultura de delatação de inocentes instaurada pelo PC soviético. A diferença é a mudança do alvo desta política de medo cotidiano. Se antes os agentes e espiões do livre mercado capitalista eram os inimigos, hoje as minorias étnicas parecem ser as responsáveis por toda a pobreza e falta de perspectiva na sociedade contemporânea russa: é necessário vigiá-las, julgá-las, caracterizá-las como potenciais suspeitos. Nesse sentido, a desigualdade social é camuflada pela diferença étnica.
Implementada globalmente em nosso planeta após os atentados políticos em 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos, a política de medo cotidiano tem dinamizado diversos segmentos econômicos ligados à indústria da violência. O fluxo de movimentação financeira proveniente da ampla cadeia produtiva desenvolvida através dessa indústria – produção de armamentos, serviços de “defesa” e segurança, soldados mercenários, financiamento de redes e atentados terroristas, diversificada produção cinematográfica e midiática, etc – representa o mais fundamental segmento da economia capitalista na atualidade.
As vantagens e promoções de produtos militares oferecidos pela Federação Russa atraem um amplo e diversificado leque de consumidores – desde o Brasil (negociações para a aquisição de caça-aviões Sukhoi), ou mesmo o governo venezuelano de Hugo Chavez, até o Estado de Israel. Dessa maneira, a guerra na Tchetchênia e suas implicações nas recentes formas de vigilância e controle da sociedade russa têm dinamizado os segmentos econômicos da indústria da violência naquele continente e, até mesmo, na América do Sul. E assim movimenta-se toda a cadeia produtiva da guerra.
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