C.C.A. Gonçalves Correia
Ao novo esforço de alguns companheir@s em dinamizar um Centro de Cultura Anarquista, surge um novo espaço em Aljustrel e ao mesmo tempo um novo nome: Centro de Cultura Anarquista Gonçalves Correia.
António Gonçalves Correia (1886 – 1967), caixeiro viajante, vegetariano e tolstoiano, é hoje ainda uma figura humana que perdura na memória de muitos alentejanos, na história da sua luta social, na imagem do “revolucionário” que percorria o Baixo Alentejo na difusão do ideal anarquista.
Figura justamente celebrada, pelas edições do empolgante CD “No Paraíso Real” (ao qual Gonçalves Correia dava a capa e motivo de alguns dos testemunhos orais acerca da “revolta e utopia no sul de Portugal”) e sobretudo pela pequena biografia da autoria de Alberto Franco “A Revolução é a Minha Namorada. Memória de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano” (da qual se remetem as citações que se seguem) a qual procura “fazer justiça ao movimento anarquista português de princípios do século, cuja memória foi meticulosamente apagada por 48 anos de ditadura, mas também por algumas forças de esquerda, ansiosas por monopolizar o combate ao Estado Novo”.
A vida de Gonçalves Correia cruza-se pois com a história da primeira metade do século XX, política, económica e social. Cruza-se e funde-se com o emancipar das ideias anarquista, com as lutas anarco-sindicalistas das minas de Aljustrel, São Domingos ou Lousal, com as lutas dos camponeses do Alto ao Baixo Alentejo e com os vários grupos e jornais anarquistas de Portalegre e Évora, a Odemira ou Cercal do Alentejo, etc. Sobre os princípios de vida de Gonçalves Correia, a sua biografia chama a atenção para que quem hoje olhe para os “tópicos da cultura libertária de há 100 anos, não deixará de se surpreender com a actualidade de muitas das propostas. Com efeito, grande número dos princípios que enformam a nossa modernidade – a liberdade, a emancipação da mulher, a defesa do amor livre, a ecologia, o respeito pelos animais, o naturismo, certos estilos alternativos de vida – mergulham as suas raízes na velha moral anarquista”.
Certos do reconhecimento da autêntica sementeira e germinal de valores e princípios anarquistas na actual “modernidade”, pese o seu persistente escamoteamento, não chegamos porém a concluir, como Alberto Franco, que “um século depois, estão socialmente consagrados muitos dos postulados do pensamento libertário, fruto de um debate intelectual estimulante e, sob muitos aspectos, antecipador”. Os postulados anti-autoritários do pensamento libertário travam mais do que nunca uma luta pela sua vitória, e nesta luta a memória histórica do anarquismo agita-se hoje ainda, no debate, na prática, e nos novos desafios que colocados à velha moral anarquista não a condenam à velhice, antes a estimulam incorrigivelmente a prosseguir na “Felicidade de todos os seres na Sociedade Futura”, como já apelava o nosso anarquista de S. Marcos da Atabueira.
Por esses motivos e pela referência de unidade de um outrora anarquismo no Baixo Alentejo, apelidamos o nosso Centro de Gonçalves Correia. Sem que isso necessariamente resulte comungarmos totalmente da corrente libertária tolstoiana de Gonçalves Correia: pacifista, na condenação de todas as formas de violência; pela transformação do indivíduo através da bondade e da fraternidade. Um tom essencialmente moral, que contudo comunga no movimento libertário com correntes mais centradas na acção directa (seja ela violenta ou não) dos mesmos objectivos emancipadores do homem ao Estado e à autoridade. Nesse sentido demarcamo-nos à partida de qualquer tendência, nem tão pouco pretendemos o catecismo de qualquer anarquismo, considerando-nos antes mais como uma porta aberta a tod@s, à margem de rótulos e muito menos de tribalismos.
Notemos como tal, a noção de socialismo que nos é dada por Gonçalves Correia (do opúsculo de 1917 “Estreia de um Crente”, a sua primeira obra, a que se seguirá em 1923 “A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura”): “… bom, será definirmos o que é o socialismo, pois temos duas espécies: temos o socialismo parlamentar, nocivo, intervencionista (…) e temos o socialismo libertário, consciente, da acção directa, que só por si faz tremer os cómodos barões que desfrutam os benefícios do património comum. Esse sim. É o socialismo do futuro, sem deputados, sem eleições, sem o deprimente «carneiro com batatas», que corrompe consciências, que aniquila caracteres”. Notemos-lhe o intento alter-globalizador “sentido que a humanidade só será feliz no dia em que der as mãos, alheia à fraternidade oficial, uma mentira repugnante, [pelo que Gonçalves Correia] declara-se anti-patriótico”, reivindicando a “abolição das fronteiras, separadoras de povos, de raças”.
Os inúmeros laços da vida e a obra de António Gonçalves Correia com os dias de hoje são a justa homenagem para um Centro de Cultura Anarquista no Alentejo do século XXI.
António Gonçalves Correia (1886 – 1967), caixeiro viajante, vegetariano e tolstoiano, é hoje ainda uma figura humana que perdura na memória de muitos alentejanos, na história da sua luta social, na imagem do “revolucionário” que percorria o Baixo Alentejo na difusão do ideal anarquista.
Figura justamente celebrada, pelas edições do empolgante CD “No Paraíso Real” (ao qual Gonçalves Correia dava a capa e motivo de alguns dos testemunhos orais acerca da “revolta e utopia no sul de Portugal”) e sobretudo pela pequena biografia da autoria de Alberto Franco “A Revolução é a Minha Namorada. Memória de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano” (da qual se remetem as citações que se seguem) a qual procura “fazer justiça ao movimento anarquista português de princípios do século, cuja memória foi meticulosamente apagada por 48 anos de ditadura, mas também por algumas forças de esquerda, ansiosas por monopolizar o combate ao Estado Novo”.
A vida de Gonçalves Correia cruza-se pois com a história da primeira metade do século XX, política, económica e social. Cruza-se e funde-se com o emancipar das ideias anarquista, com as lutas anarco-sindicalistas das minas de Aljustrel, São Domingos ou Lousal, com as lutas dos camponeses do Alto ao Baixo Alentejo e com os vários grupos e jornais anarquistas de Portalegre e Évora, a Odemira ou Cercal do Alentejo, etc. Sobre os princípios de vida de Gonçalves Correia, a sua biografia chama a atenção para que quem hoje olhe para os “tópicos da cultura libertária de há 100 anos, não deixará de se surpreender com a actualidade de muitas das propostas. Com efeito, grande número dos princípios que enformam a nossa modernidade – a liberdade, a emancipação da mulher, a defesa do amor livre, a ecologia, o respeito pelos animais, o naturismo, certos estilos alternativos de vida – mergulham as suas raízes na velha moral anarquista”.
Certos do reconhecimento da autêntica sementeira e germinal de valores e princípios anarquistas na actual “modernidade”, pese o seu persistente escamoteamento, não chegamos porém a concluir, como Alberto Franco, que “um século depois, estão socialmente consagrados muitos dos postulados do pensamento libertário, fruto de um debate intelectual estimulante e, sob muitos aspectos, antecipador”. Os postulados anti-autoritários do pensamento libertário travam mais do que nunca uma luta pela sua vitória, e nesta luta a memória histórica do anarquismo agita-se hoje ainda, no debate, na prática, e nos novos desafios que colocados à velha moral anarquista não a condenam à velhice, antes a estimulam incorrigivelmente a prosseguir na “Felicidade de todos os seres na Sociedade Futura”, como já apelava o nosso anarquista de S. Marcos da Atabueira.
Por esses motivos e pela referência de unidade de um outrora anarquismo no Baixo Alentejo, apelidamos o nosso Centro de Gonçalves Correia. Sem que isso necessariamente resulte comungarmos totalmente da corrente libertária tolstoiana de Gonçalves Correia: pacifista, na condenação de todas as formas de violência; pela transformação do indivíduo através da bondade e da fraternidade. Um tom essencialmente moral, que contudo comunga no movimento libertário com correntes mais centradas na acção directa (seja ela violenta ou não) dos mesmos objectivos emancipadores do homem ao Estado e à autoridade. Nesse sentido demarcamo-nos à partida de qualquer tendência, nem tão pouco pretendemos o catecismo de qualquer anarquismo, considerando-nos antes mais como uma porta aberta a tod@s, à margem de rótulos e muito menos de tribalismos.
Notemos como tal, a noção de socialismo que nos é dada por Gonçalves Correia (do opúsculo de 1917 “Estreia de um Crente”, a sua primeira obra, a que se seguirá em 1923 “A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura”): “… bom, será definirmos o que é o socialismo, pois temos duas espécies: temos o socialismo parlamentar, nocivo, intervencionista (…) e temos o socialismo libertário, consciente, da acção directa, que só por si faz tremer os cómodos barões que desfrutam os benefícios do património comum. Esse sim. É o socialismo do futuro, sem deputados, sem eleições, sem o deprimente «carneiro com batatas», que corrompe consciências, que aniquila caracteres”. Notemos-lhe o intento alter-globalizador “sentido que a humanidade só será feliz no dia em que der as mãos, alheia à fraternidade oficial, uma mentira repugnante, [pelo que Gonçalves Correia] declara-se anti-patriótico”, reivindicando a “abolição das fronteiras, separadoras de povos, de raças”.
Os inúmeros laços da vida e a obra de António Gonçalves Correia com os dias de hoje são a justa homenagem para um Centro de Cultura Anarquista no Alentejo do século XXI.
António Gonçalves Correia: acima de tudo, um anarquista
J. M. Carvalho Ferreira
Alberto Franco fez um trabalho de investigação exemplar: conseguiu resgatar os traços essenciais da trajectória da vida de um homem que tentou viver a anarquia de uma forma muito sui generis. Embora já tivesse oportunidade de ler dois pequenos livros de António Gonçalves Correia - Estreia de um Crente (1917); A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura (1921) -, Alberto Franco não somente soube extrair os elementos analíticos e ideológicos cruciais que configuraram o pensamento desse grande anarquista alentejano, como também contextualizou socio-historicamente a sua luta e sua vida nos parâmetros do imaginário colectivo e práticas do anarquismo durante o século XX em Portugal. Os conteúdos e as formas do pensamento, assim como as experiências comunitárias, de António Gonçalves Correia, mais do que nunca, devem ser objecto de um exercício de interpretação e de compreensão por todos aqueles que se dizem libertários. Na minha opinião, existem três razões plausíveis que me levam a fazer estas afirmações. Em primeiro lugar, o pensamento e as formas de intervenção social de António Gonçalves demonstram à saciedade que a anarquia, enquanto um ideal, uma filosofia, uma ética e uma estética, é sempre possível de ser interpretada, explicada e vivida consoante cada indivíduo ou grupo que aspira à construção de uma sociedade sem deuses e sem amos. A visão tolstoiniana que António Gonçalves Correia tem da anarquia leva-o a abraçar um tipo de anarquismo naturista e pacifista, numa época em que predominavam as teorias e as práticas do anarco-comunismo e do anarco-sindicalismo. Não admira assim que a sua intervenção social fosse marginal no contexto dos movimentos sociais e do anarquismo que tinham maior expressão nas primeiras décadas do século XX em Portugal. Em segundo lugar, os exemplos comunitários de construção e de experimentação social anarquista no contexto das sociedades capitalistas, como foram os casos emblemáticos da Comuna da Luz, sediada em Vale de Santiago, entre 1917 e 1918, e a Comuna Clarão, sediada em Albarraque, entre finais da década de vinte e princípios da década de trinta do século XX, revelaram-se extraordinariamente importantes, na medida em que essas duas experiências se traduziram em modalidades práticas de utopias concretas. Essas experiências, ainda que tenham soçobrado e tenham sido atravessadas por uma série de contradições e conflitos, revelaram sobremaneira que não existe dissociação espácio-temporal entre reforma e revolução, entre teoria e prática, e sobretudo entre a utopia com um sentido histórico absoluto e a utopia com um sentido histórico relativo. Com esses tipos de experimentação social comunitária, António Gonçalves Correia e as outras pessoas que participaram nesse processo demonstraram quão difícil é traduzir na prática os princípios estruturantes da emancipação social: liberdade, fraternidade, amor e solidariedade. Em terceiro lugar, os exemplos subjacentes aos princípios e práticas do anarco-naturismo e do anarco-pacifismo que atravessaram a vida quotidiana de António Gonçalves Correia revestem-se de uma grande actualidade. Na verdade, quando hoje à escala mundial assistimos à destruição progressiva da natureza, com especial incidência na evidência empírica que nos é transmitido pela poluição atmosférica, camada do ozono, morte dos rios, florestas e mares, a atitude de António Gonçalves Correia em relação às espécies animais e vegetais é de uma força simbólica inimaginável. Comprar passarinhos que estavam prisioneiros nas gaiolas aos comerciantes que os vendiam nas feiras do Alentejo para depois os libertar, ou desviar-se com a sua bicicleta dos caminhos percorridos pelas formigas para não as matar, são exemplos paradigmáticos de como nós devemos agir para se construir um equilíbrio ecossistémico entre todas as espécies animais e vegetais. São exemplos significativos que não basta lutar exclusivamente pelo fim da opressão e exploração entre os seres humanos, mas também contra a opressão e exploração destes sobre as outras espécies animais e vegetais. Enfim, um livro para ler e aprender com a vida de um homem que não se vergou aos ditames do progresso e da razão, aos desígnios e estratégias do capital e do Estado. Alberto Franco, A revolução é a minha namorada - Memórias de António Gonçalves Correia, anarquista alentejano. Ed. Câmara Municipal de Castro Verde, 2000.